
Introdução:
O Transtorno do Espectro Autista (TEA) molda a forma como indivíduos percebem e interagem com o mundo, incluindo suas experiências sensoriais, cognitivas e sociais. Essa singularidade intrínseca torna a exploração da religião e espiritualidade um campo particularmente complexo e pessoal para muitas pessoas no espectro. A espiritualidade, essencial para o senso de pertencimento e busca de significado, é para indivíduos autistas frequentemente mediada por desafios relacionados à dificuldade com abstrações, à necessidade de concretude e às sensibilidades sensoriais.
Este artigo busca explorar a experiência espiritual de pessoas com autismo, destacando suas particularidades na percepção de Deus e na participação em práticas religiosas. Através de uma revisão bibliográfica, abordamos as dificuldades encontradas, as adaptações necessárias nas comunidades de fé e as contribuições da filosofia e teologia para entender e acolher essa jornada singular. Nosso objetivo é analisar como a espiritualidade pode ser um caminho para a inclusão, respeitando a individualidade e as necessidades específicas de cada pessoa neuroatípica.
Desenvolvimento:
A Singularidade da Experiência Espiritual no Autismo
A forma como indivíduos autistas processam informações sensoriais e cognitivas molda profundamente sua experiência religiosa e espiritual (Grandin, 2013; Silberman, 2015). A tendência ao pensamento concreto, a dificuldade com conceitos abstratos e a sensibilidade sensorial podem tornar as práticas religiosas tradicionais, repletas de simbolismo, metáforas e rituais complexos, um desafio significativo.
- O que ajuda? Compreender que dificuldades na interpretação de abstrações (Wittgenstein, 1953), como conceitos teológicos complexos (“salvação”, “pecado”), e o desconforto com excesso de estímulos sensoriais (luzes, ruído) podem dificultar a conexão com a fé de maneiras convencionais. Essa compreensão direciona a busca por abordagens que valorizem a clareza, a concretude e a adaptação sensorial, permitindo que a pessoa no espectro encontre um caminho espiritual que ressoe com sua forma única de perceber o mundo.
Em Busca de um Deus Concreto
Diante da dificuldade com abstrações, muitos indivíduos autistas podem buscar uma representação mais tangível ou concreta do divino.
- O que ajuda? Reconhecer que a necessidade de visualizar Deus de forma mais próxima da realidade física ou interagir com o divino de maneira direta e pessoal (Grandin, 2013) é uma adaptação natural ao pensamento concreto. Essa busca por clareza e tangibilidade reflete a maneira lógica e ordenada com que muitos autistas processam informações. Abordagens teológicas inclusivas que enfatizam um “Deus próximo” (como o conceito de imago Dei) podem ser úteis para oferecer estruturas de compreensão que respeitem essa necessidade por concretude e reforcem o direito universal à relação com o divino, promovendo práticas religiosas mais acessíveis.
Desafios Sensoriais e a Participação Religiosa
Ambientes religiosos podem apresentar uma sobrecarga de estímulos sensoriais que geram desconforto significativo para indivíduos autistas.
- O que ajuda? Entender que o excesso de estímulos como luzes fortes, música alta, multidões e toque físico em espaços religiosos tradicionais (Ashburner et al., 2014) pode resultar em estresse e até impedir a participação. A pesquisa evidencia que dificuldades no processamento sensorial estão correlacionadas com desafios comportamentais e sociais (Ashburner et al., 2014). Essa compreensão destaca a urgência em adaptar ambientes religiosos, minimizando ruídos, controlando a iluminação e oferecendo espaços tranquilos de refúgio. Abordagens da filosofia da religião que valorizam a simplicidade e a experiência estética da fé (Swedenborg) podem inspirar práticas que se alinhem melhor com a sensibilidade sensorial de indivíduos autistas.
O Papel Essencial da Família na Jornada Espiritual
A família desempenha um papel fundamental na formação dos valores espirituais e no apoio à experiência religiosa de pessoas no espectro autista.
- O que ajuda? Um ambiente familiar que reconhece e compreende as especificidades cognitivas e sensoriais do indivíduo autista pode fornecer o suporte emocional e a adaptação necessários para construir uma relação autêntica com a fé. A família pode mediar a experiência religiosa, adaptando práticas e utilizando recursos visuais ou concretos para facilitar a compreensão de conceitos abstratos. Integrar perspectivas teológicas inclusivas (como a teologia da esperança de Moltmann, 1993, que enfatiza um futuro de aceitação e transformação) ajuda a família a oferecer uma experiência religiosa flexível e não julgadora, respeitando o ritmo e a maneira única de cada indivíduo vivenciar sua fé, promovendo uma jornada espiritual genuína e inclusiva.
Construindo Espaços Religiosos Inclusivos
Tornar as comunidades e práticas religiosas verdadeiramente acolhedoras para pessoas com autismo exige adaptações intencionais.
- O que ajuda? A criação de espaços sensorialmente amigáveis (iluminação suave, redução de ruído, áreas de refúgio) é crucial. A comunicação clara, direta e o uso de apoios visuais facilitam a compreensão de rituais e mensagens. O suporte personalizado, como a presença de um mentor, e a flexibilidade na participação em rituais permitem que a pessoa se conecte de forma confortável. A adaptação do ensino religioso com materiais multissensoriais e a introdução gradual de rituais também são benéficas. A sensibilização e o treinamento de líderes religiosos e membros da comunidade (Swinton, 2012) são essenciais para cultivar empatia, respeito e uma verdadeira aceitação da diversidade na vivência da fé, garantindo que todos possam participar plenamente.
Abertura para o Ceticismo e Respeito Individual
Diante dos desafios de enquadramento em estruturas religiosas tradicionais, alguns indivíduos autistas podem adotar posturas céticas ou ateias.
- O que ajuda? Tratar essas escolhas com respeito é fundamental. Compreender o ceticismo (uma atitude de questionamento e dúvida baseada na busca por evidências) e o ateísmo (a ausência de crença em divindades) (Metzinger, 2009) como respostas filosóficas legítimas reflete a busca do indivíduo autista por um sistema de crenças congruente com sua visão de mundo e experiência pessoal. Respeitar essa autonomia e busca por clareza (Metzinger, 2009) é essencial, reconhecendo que a jornada espiritual, ou a ausência dela, é profundamente individual e deve ser acolhida sem julgamento dentro de uma perspectiva de neurodiversidade e respeito à singularidade de cada pessoa.
Quer saber mais? Veja as fontes que inspiraram este artigo:
Ashburner et al. (2014) Grandin (2013) Metzinger (2009) Moltmann (1993) Silberman (2015) Swinton (2012) Wittgenstein (1953) Portela (2025a) Portela (2025b)