A ETIOLOGIA DO TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA

Índice


Resumo:

Este capítulo aprofunda a investigação da complexa etiologia do Transtorno do Espectro Autista (TEA), destacando a interação intrincada entre fatores genéticos e ambientais. Analisamos a contribuição de mutações genéticas espontâneas (de novo) e variantes genéticas herdadas, diferenciando seus papéis e a proporção estimada de casos a eles associados com base em estudos genômicos em larga escala. Explora-se o impacto dos fatores ambientais, como exposições pré-natais e perinatais, e discute-se como a interação gene-ambiente modula o risco e a expressão fenotípica do TEA. O capítulo aborda a necessidade de modelos integrativos, metaforicamente referidos como um “Mapa do Autismo”, para compreender as diversas vias etiológicas que convergem em disfunções neurobiológicas comuns. O objetivo é fornecer uma visão fundamentada das causas do TEA, sublinhando a heterogeneidade etiológica que informa a variabilidade clínica e apoia o desenvolvimento de abordagens diagnósticas e terapêuticas personalizadas.

Palavras-chave: Transtorno do Espectro Autista, Genética, Hereditariedade, Fatores Ambientais


1. Introdução

O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é uma condição neurodesenvolvimental complexa, definida por critérios diagnósticos focados em déficits persistentes na comunicação social e em padrões restritos e repetitivos de comportamento, interesses ou atividades (American Psychiatric Association [APA], 2013). A prevalência do TEA tem apresentado um aumento notável ao longo das últimas décadas, alcançando estimativas como 1 em cada 36 crianças de 8 anos nos Estados Unidos, segundo dados recentes (Maenner et al., 2023). Este panorama epidemiológico, aliado à significativa variabilidade na apresentação clínica (fenótipo), impulsiona a pesquisa científica na busca pela elucidação de suas causas subjacentes.

Historicamente, a etiologia do autismo foi concebida sob a ótica de causas únicas, ora psicogênicas, ora estritamente genéticas ou ambientais. Contudo, o avanço da ciência, especialmente nas áreas da genética molecular, neuroimagem e epidemiologia, solidificou o entendimento de que o TEA é um transtorno de origem multifatorial e poligênica na maioria dos casos, resultante da intrincada interação entre múltiplos fatores genéticos (herdados e espontâneos) e influências ambientais ao longo de períodos críticos do neurodesenvolvimento (Geschwind & State, 2010; Modabbernia, Velthorst, & Reichenberg, 2017).

Este capítulo dedica-se a explorar as diversas vertentes etiológicas do TEA. Inicialmente, faremos uma distinção crucial entre as contribuições das mutações genéticas espontâneas (de novo) e as variantes genéticas herdadas dos pais, apresentando dados recentes sobre suas respectivas contribuições para o risco do transtorno. Em seguida, abordaremos o papel crescente reconhecido dos fatores ambientais, com ênfase nas exposições pré-natais e perinatais. Finalmente, discutiremos a fundamental interação entre genes e ambiente e a necessidade de modelos integrativos – uma espécie de “Mapa do Autismo” – para compreender a complexa teia de causas que converge nas alterações neurobiológicas observadas no espectro, informando, assim, abordagens diagnósticas e terapêuticas mais precisas e personalizadas.

2. Fatores Genéticos na Etiologia do TEA

A genética desempenha um papel preponderante na suscetibilidade ao TEA, com estudos de gêmeos estimando a herdabilidade em 70-80% ou até mais, dependendo da metodologia (Sandin et al., 2017; Colvert et al., 2015). No entanto, essa influência genética não se resume a um único gene ou padrão de herança simples, sendo caracterizada por uma complexa arquitetura que envolve tanto variantes genéticas raras de grande efeito quanto variantes comuns de pequeno efeito.

2.1. Mutações Genéticas Espontâneas (De Novo)

Mutações de novo são alterações no DNA que aparecem pela primeira vez em um membro de uma família como resultado de uma mutação em uma célula germinativa (óvulo ou espermatozoide) de um dos pais, ou em uma célula do ovo fertilizado logo após a fecundação. Essas mutações não estão presentes no DNA da maioria das células dos pais.

  • O que essa pesquisa ajuda a entender? A pesquisa sobre mutações de novo, impulsionada pelo sequenciamento de exoma e genoma em larga escala em famílias simplex (aquelas com apenas um indivíduo afetado), revolucionou a compreensão da etiologia do TEA. Esses estudos revelaram que mutações de novo, incluindo variações de número de cópias (CNVs) e variantes de nucleotídeo único (SNVs), contribuem significativamente para o risco de TEA em uma fração substancial de casos. Análises em grandes coortes como a Simons Simplex Collection estimaram que mutações de novo que causam perda de função (LoF) em genes importantes contribuem para cerca de 10-15% dos casos de TEA, enquanto CNVs de novo de alto impacto podem explicar outros 5-10% (Sanders et al., 2015; Levy et al., 2011). Estudos mais recentes, que incluem diferentes tipos de mutações de novo, sugerem que elas podem explicar entre 50% e 67% do risco em famílias simplex, dependendo da especificidade da análise (Yoon et al., 2021). Essas mutações de novo tendem a ocorrer em genes altamente conservados e expressos no cérebro, frequentemente envolvidos em processos cruciais como a função sináptica, a organização da cromatina, a transcrição e a sinalização celular (Satterstrom et al., 2020). A identificação desses genes de novo de alto risco (atualmente são centenas de “genes de alto grau de confiança”) é fundamental para o diagnóstico genético, o aconselhamento familiar e para direcionar pesquisas sobre mecanismos biológicos específicos disfuncionais no TEA.

2.2. Variantes Genéticas Hereditárias

A maior parte do risco genético para o TEA parece ser hereditário, embora a forma como é transmitido e se manifesta seja complexa.

  • O que essa pesquisa ajuda a entender? A pesquisa sobre variantes hereditárias tem avançado em duas frentes principais: variantes raras herdadas e variantes comuns herdadas. Variantes raras, incluindo CNVs raras e variantes de um único nucleotídeo em genes de risco, podem ser herdadas de pais que podem apresentar fenótipo ampliado do autismo (características autistas subclínicas) ou estarem dentro da variação neurotípica, demonstrando o conceito de penetrância reduzida e expressividade variável (Bourgeron, 2015). Estudos têm mostrado que essas variantes raras herdadas contribuem para o risco em uma porção significativa de casos, complementando a contribuição das mutações de novo. Além disso, estudos de associação genômica ampla (GWAS) em grandes populações identificaram muitas variantes genéticas comuns (polimorfismos de nucleotídeo único – SNPs) que, individualmente, conferem um risco muito pequeno, mas coletivamente, através de um “score de risco poligênico” (PRS), podem explicar uma proporção considerável da herdabilidade do TEA (Grove et al., 2019). O modelo atual sugere que o risco de TEA para um indivíduo pode ser uma combinação da carga de variantes raras de grande efeito (herdadas ou de novo) e a carga cumulativa de muitas variantes comuns de pequeno efeito. Compreender essa arquitetura hereditária multifacetada é vital para refinar modelos de predição de risco e entender por que o TEA ocorre em algumas famílias sem uma causa genética de novo evidente.

3. Fatores Ambientais e Suas Interfaces

Embora a contribuição genética seja dominante, fatores ambientais também desempenham um papel modulador no risco de TEA, especialmente durante o desenvolvimento pré e perinatal.

  • O que essa pesquisa ajuda a entender? A pesquisa epidemiológica tem consistentemente associado uma série de exposições ambientais a um risco aumentado de TEA. Isso inclui a idade parental avançada (tanto materna quanto, de forma mais proeminente em alguns estudos, paterna), infecções maternas durante a gravidez (como rubéola, infecção por citomegalovírus, ou infecções bacterianas que podem induzir uma resposta imune materna que afeta o feto), exposição a certas toxinas ambientais (como poluição do ar, pesticidas organofosforados, ftalatos), e condições maternas durante a gravidez (como diabetes gestacional, obesidade, disfunções tireoidianas e problemas do sistema imune) (Modabbernia, Velthorst, & Reichenberg, 2017; Roberts et al., 2020; Gardener et al., 2011). Complicações perinatais, como extrema prematuridade e baixo peso ao nascer, também são fatores de risco estabelecidos (Gardener et al., 2011). É importante notar que a maioria desses fatores ambientais, isoladamente, confere um pequeno aumento no risco, e não causa o TEA diretamente na maioria dos casos. O que essa pesquisa enfatiza é a suscetibilidade do cérebro em desenvolvimento a insultos em janelas temporais específicas, e a necessidade de considerar como esses fatores interagem com a predisposição genética individual.

4. A Essencial Interação Gene-Ambiente (GxE)

A visão mais atual e complexa da etiologia do TEA postula que o risco não é simplesmente a soma de fatores genéticos e ambientais, mas reside significativamente na interação entre eles (GxE).

  • O que essa pesquisa ajuda a entender? A pesquisa em GxE busca identificar como certas variantes genéticas tornam um indivíduo mais vulnerável ou mais resiliente a um determinado fator ambiental, e vice-versa. Por exemplo, variantes em genes envolvidos em vias de detoxificação podem influenciar como um indivíduo responde à exposição a pesticidas ou poluição do ar (Roberts et al., 2020). Da mesma forma, a ativação imune materna induzida por infecções pode ter efeitos diferentes no neurodesenvolvimento fetal dependendo do perfil genético do feto (Romero et al., 2014). Estudos de GxE são metodologicamente desafiadores, exigindo grandes coortes com dados genéticos detalhados e medidas precisas de exposição ambiental ao longo do tempo (Knusten et al., 2021). No entanto, a identificação de interações GxE específicas é fundamental, pois ela pode revelar mecanismos biológicos etiológicos precisos e identificar subgrupos de indivíduos em maior risco devido a combinações específicas de suscetibilidade genética e exposição ambiental. Compreender essas interações é crucial para o desenvolvimento de estratégias de prevenção mais eficazes e para intervenções que considerem a biologia subjacente do indivíduo.

5. Modelos Integrativos: Construindo um “Mapa do Autismo” Etiológico

Dada a multiplicidade de fatores genéticos e ambientais implicados e suas interações, a pesquisa etiológica do TEA está se movendo para além da identificação de fatores isolados em direção a modelos integrativos que buscam mapear as diversas “rotas” ou “caminhos” que podem levar ao desenvolvimento do transtorno. A metáfora de um “Mapa do Autismo” etiológico reflete a necessidade de visualizar e compreender a complexidade dessa rede de influências.

  • O que essa pesquisa ajuda a entender? Modelos integrativos buscam sintetizar as descobertas da genética, epigenética, transcriptômica, proteômica, metabolômica, neuroimagem e estudos ambientais para criar uma imagem mais completa de como diferentes insultos (genéticos ou ambientais) podem convergir em um número limitado de disfunções neurobiológicas comuns (como disfunção sináptica, neuroinflamação, estresse oxidativo, alterações na conectividade cerebral) que, em última instância, se manifestam no fenótipo autista (Geschwind & State, 2010; Walsh et al., 2008). Abordagens “ômicas” em larga escala (como multi-ômicas) em amostras biológicas de indivíduos com TEA e seus familiares são essenciais para construir esse mapa, identificando assinaturas moleculares que refletem a interação entre genes e ambiente ao longo do tempo (Huguet et al., 2017). Esses modelos integrativos são fundamentais para:
    • Reduzir a heterogeneidade: Agrupar indivíduos com base em mecanismos etiológicos subjacentes compartilhados, em vez de apenas sintomas comportamentais.
    • Identificar biomarcadores: Descobrir marcadores biológicos que podem auxiliar no diagnóstico precoce e na estratificação de pacientes para intervenções.
    • Desenvolver terapias personalizadas: Direcionar tratamentos para as vias biológicas específicas que estão disfuncionais em subgrupos de indivíduos, com base em seu perfil etiológico único (Genovese & Butler, 2020).
    • Informar estratégias preventivas: Identificar períodos críticos de suscetibilidade no neurodesenvolvimento e exposições ambientais de risco que podem ser mitigadas, especialmente para indivíduos geneticamente predispostos.

A construção desse “Mapa do Autismo” é um esforço contínuo que exige colaboração multidisciplinar e o compartilhamento de grandes conjuntos de dados para desvendar a complexa rede de causas que resulta na vasta heterogeneidade do TEA.

6. Conclusão

A etiologia do Transtorno do Espectro Autista é um campo de pesquisa dinâmico que evoluiu de visões simplistas para um reconhecimento da sua natureza multifatorial e da complexa interação entre fatores genéticos (espontâneos e herdados) e ambientais. As mutações de novo e as variantes genéticas herdadas contribuem para o risco do TEA em diferentes proporções e através de mecanismos variados que impactam o neurodesenvolvimento. Ao mesmo tempo, fatores ambientais atuam como moduladores de risco, frequentemente interagindo com a predisposição genética.

O avanço das tecnologias genômicas e neurocientíficas, juntamente com a pesquisa epidemiológica robusta, está permitindo a identificação de genes de risco específicos, a quantificação das contribuições relativas de diferentes classes de variantes genéticas, a identificação de exposições ambientais de risco e o início da compreensão de como genes e ambiente interagem.

O futuro da pesquisa etiológica do TEA reside na integração desses diversos fios de conhecimento para construir modelos compreensivos – um verdadeiro “Mapa do Autismo” – que expliquem a heterogeneidade do transtorno e identifiquem as diversas vias etiológicas que levam ao fenótipo autista. Esse entendimento aprofundado das causas subjacentes é essencial para o desenvolvimento de estratégias de diagnóstico mais precisas, intervenções terapêuticas personalizadas e, em última instância, para melhorar a qualidade de vida dos indivíduos com TEA e suas famílias. O percurso é desafiador, mas a pesquisa colaborativa e integrativa oferece uma promessa significativa para descobertas transformadoras neste campo.


Quer saber mais? Veja as fontes que inspiraram este artigo:

Bailey, Palferman, Heavey, & Couteur (1998) Chaste & Leboyer (2012) Lintas & Persico (2008) Reiss, Feinstein, & Rosenbaum (1986) Portela (2025a) Portela (2025b), dentre outros

Eúnice Nobrega

Possuo pós-doutorados em Psicanálise (Miami-FL, EUA) e em Psicanálise Clínica (IESS-BR), doutorado em Educação/Psicologia Social (UnB), e é Psicanalista Clínica/Neuropsicóloga. Com especializações em Transtorno do Espectro do Autismo (TEA), Terapia Cognitivo-Comportamental (TCC), Análise do Comportamento Aplicada (ABA), Saúde Mental e Orientação Educacional, além de ser Psicopedagoga Clínica. Atuo como Professora Universitária em Programas de Graduação e Pós-Graduação (Lato Sensu e Stricto Sensu). Além de ser pesquisadora, escritora e palestrante.

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